quarta-feira, 10 de junho de 2015

PROVARAM DO PRÓPRIO VENENO?

Trabalhadores que tanto se dedicaram para salvar a população das doenças causadas por endemias, hoje vivem doentes ou chegaram a óbito. Eles alegam que estão contaminados pelos próprios inseticidas usados durante o trabalho. A questão é que, o Ministério da Saúde, responsável pelos servidores, não reconhece que a causa das enfermidades são os venenos. Enquanto isso, os trabalhadores seguem sequelados e temendo um desfecho sem volta
Arrastada estava a voz de seu Romildo quando atendeu ao telefone. A respiração, de tão ofegante, preocupava quem estava do outro lado da linha. Dava até para escutá-lo puxando o ar com muito esforço. A conversa foi rápida e não teve desfecho, pois o papo foi interrompido a pedido dele. Acabara de finalizar uma sessão de quimioterapia e já sentia os fortes efeitos do tratamento.

Assim foi o primeiro contato da reportagem do LeiaJá com Severino Romildo Ferreira, de 56 anos. Em 1983, ele era um dos trabalhadores da antiga Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam), extinta nos anos 1990 após a criação da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), pela qual seu Romildo passou a trabalhar. As instituições eram ligadas ao Governo Federal e atuavam no combate às endemias, como malária, barbeiro e o mosquito da dengue. Munidos de inseticidas, como o DDT e o BHC, cujo uso no Brasil é autorizado só em casos extremos, esses trabalhadores se transformaram em verdadeiros exércitos espalhados por todo o País, com o objetivo de combater doenças através de dedetizações. Hoje, numa ironia do destino, a grande maioria desses homens é que está doente. Eles alegam que as enfermidades têm relação com os inseticidas aos quais estavam expostos, entretanto, muitos não possuem atestados médicos que comprovem o fato.


Seu Romildo já não é mais o mesmo das fotos espalhadas pela sua residência localizada na cidade de São José do Egito, Sertão do Pajeú de Pernambuco, a quase 400 quilômetros do Recife. Nas fotografias ao lado da família, o trabalhador se mostrava sorridente, bem fisicamente e com saúde. Hoje a realidade é outra. Acamado, ele sente os efeitos da descoberta de um câncer de pulmão em setembro de 2014. "Comecei a sentir fortes dores nas pernas e nos braços. Depois começou o cansaço. Mas não era um cansaço comum. Ele era forte, como nunca senti antes. No trabalho, um colega me mandava ir ao médico, só que nunca imaginei que estava com câncer", conta Romildo, reclamando de dores no decorrer da entrevista.
Até 1995, seu Romildo trabalhou por várias cidades do Sertão do Pajeú no combate às endemias. Além de borrifar os inseticidas, o "soldado da Funasa" pesava o DDT para diluí-lo em 10 litros de água por recipiente. De acordo com o trabalhador, o procedimento era totalmente manual e a repartição não oferecia equipamentos de segurança adequados para a atividade. Além disso, ele denuncia que nunca recebeu orientação sobre os possíveis efeitos colaterais e malefícios dos inseticidas, e que, há cerca de 20 anos, os trabalhadores da Funasa – pertencente ao Ministério da Saúde - não passam por exames periódicos de saúde. "A gente era orientado a dizer que o produto não fazia mal para a população e a nós, os trabalhadores. Quando eu voltava pra casa, a roupa ficava com um mau cheiro terrível", comenta o servidor.

Depois de se dedicar à dedetização, Romildo foi promovido para a função de supervisor em 1998. Até então, nunca havia sentido efeitos da possível contaminação, porém, outros servidores alegam que as consequências do contágio ocorrem a longo prazo. Em junho de 2014, depois de não suportar as dores e sofrer com a fraca respiração, Romildo foi internado na própria cidade e passou por exames. De São José do Egito, o trabalhador foi encaminhado – já de licença médica da Funasa – para médicos especialistas em pulmão no Recife. Outras avaliações foram feitas e em setembro veio a constatação do câncer. "Algo me dizia que era câncer. Só que é difícil de acreditar. Pensei no começo que a causa seria o cigarro, mas, como havia parado de fumar a um tempo e quando vi os raios "X" do meu pulmão, tive certeza de que o câncer tem relação com o inseticida BHC. Isso vem acontecendo com muitos trabalhadores. Hoje, minha situação é essa... Encima de uma cama, sem poder andar", relata o trabalhador, emocionado.

Outro servidor da Funasa que viveu o drama de uma doença foi Antônio de Souza Lemos Filho, 53 anos. O trabalhador, morador da cidade de Glória do Goitá, Zona da Mata de Pernambuco, lutou contra uma cirrose hepática, mas infelizmente não resistiu e morreu há dois anos. Em depoimento dado à Revista Garra, do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Estado de Pernambuco (Sindsep-PE), o trabalhador disse que atuava no combate às endemias "sem nenhum cuidado ou preocupação". De acordo com o Sindsep, seu Antônio trabalhou por mais de 25 anos exposto aos inseticidas.


A diretora do Sindsep-PE, Lindinere Ferreira, diz que os trabalhadores de Pernambuco e de outros estados foram esquecidos pelo poder público, em especial o Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde. "A gente percebe que existe uma omissão do Estado quase que criminosa. Os trabalhadores estão adoecendo, morrendo e praticamente nada é feito. O que me deixa mais preocupada é que estou vendo as prefeituras repetirem a mesma coisa com os atuais agentes de saúde. Nós, enquanto sindicato, queremos que o Estado assuma a responsabilidade pelo o que está acontecendo", cobra a sindicalista.

Ex-presidente da Associação dos Trabalhadores da Funasa em Pernambuco e atual diretor do Sindsep, Felipe Pereira também compartilha da ideia de que esses trabalhadores vivem um sério descaso. Pereira já trabalhou muitos anos como agente da Funasa e também afirma que a atual situação dos servidores adoecidos é precária. Confira depoimentos no vídeo:


No Norte, o dilema se repete

Trabalhadores da Região Norte do Brasil são os que mais reclamam de contaminação com os inseticidas. Pelo grande número de reclamações, até associações tiveram de ser feitas para dar voz aos servidores da Funasa. No Pará, por exemplo, os agentes que tanto lutaram para combater a malária, hoje vivem como um batalhão mutilado.


Em entrevista ao LeiaJá, o presidente de um dos grupos de trabalhadores associados, Weldon Vargens, gestor da Associação dos Servidores da Ex-Sucam Expostos ao DDT de Altamira, cidade localizada a cerca de 500 quilômetros de Belém, capital do Pará, mostra indignação com o adoecimento dos trabalhadores e a falta de apoio do Ministério da Saúde e da própria Funasa. Ele alega que o Ministério é irresponsável com os servidores.
"Quando fizemos parte do quadro da extinta Sucam éramos vinculados ao Ministério da Saúde. A partir de 1990 foi criada a Funasa e depois de 20 anos retornamos novamente ao Ministério da Saúde. E parece algo proposital como estratégia deste governo, como forma do Ministério da Saúde jogar a culpa para a Funasa e vice-versa. A posição do Ministério em relação aos servidores intoxicados é de pura irresponsabilidade com a vida alheia. Este governo é um governo de covardes", declara o presidente da Associação.
De acordo com Vargens, na época de combate aos vetores transmissores, como malária, dengue e leishmaniose, os servidores chegavam a trabalhar 15 dias consecutivos com o DDT. Segundo o presidente, os trabalhadores dormiam ao lado dos inseticidas, seja nas localidades de transmissão da malária e até em regiões de selva. "Usávamos os recipientes que eram utilizados para manipular o inseticida para nossa higiene e até bebíamos água. Era negligência total porque fomos mal instruídos. Queremos o reconhecimento por parte do Ministério da Saúde da intoxicação dos servidores da ex-Sucam causada pela exposição aos inseticidas".
Weldo Vargens diz que a principal dificuldade para a comprovação da contaminação é a falta de laudos para provar que doenças e mortes dos servidores têm relação com os inseticidas. "É aproveitando da dificuldade de provarmos que tal doença ou morte foram causadas pela exposição ao inseticida, que o governo e seus carrascos têm dificultado o reconhecimento da intoxicação dos servidores", comenta Vargens. De acordo com ele, só na Associação de Altamira, são dez mortes registradas, sem a inclusão dos servidores que foram demitidos ou pediram demissão. Ele também alega que 30 exames foram feitos pelo toxicologista farmacêutico Otávio Brasil, responsável pelo Centro de Atendimento Toxicológico, em Brasília. Segundo Vargens, todos eles atestaram que os trabalhadores estavam intoxicados por DDT. A reportagem do LeiaJá teve acesso a alguns exames e, segundo os documentos, existe presença de DDT nos servidores examinados.
Para mostrar a situação dos trabalhadores do Norte, a TV Câmara, da Câmara dos Deputados, produziu o documentário "Trabalhadores da Sucam e DDT", em 2009. No vídeo abaixo, acompanhe trechos da reportagem cedida ao LeiaJá:

O que dizem os especialistas

De acordo com a médica doutora em saúde do trabalho, Idê Gurgel, os inseticidas usados durante as antigas atividades dos servidores da Funasa, como o BHC e DDT, são altamente danosos à saúde e podem acarretar doenças e consequentemente a morte dos trabalhadores.
"Esses produtos são muito danosos e persistentes. No solo, no ambiente, o DDT pode chegar a ficar até 30 anos. Nas pessoas ele pode ficar bastante tempo. Quem trabalhou nas décadas de 80 e 90, pode sim, com certeza, estar doente por causa do contato com os inseticidas. A intoxicação crônica acontece por um processo de ação sistêmica dos agrotóxicos que acomete vários órgãos, podendo aparecer de diferentes maneiras e a longo prazo. Pode acontecer acima de dois anos, até o infinito", afirma a médica, que também é pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Pernambuco.

Ainda sobre a intoxicação crônica, a doutora exemplifica como pode acontecer o adoecimento: "Se o sujeito se expõe a um organoclorado do tipo DDT, ele pode passar 20, 30 anos da vida sem apresentar quadros. De repente podem aparecer diabetes, um câncer, ou outros quadros... Você pode estabelecer essa relação com a exposição crônica que ele teve. No caso dos trabalhadores da Funasa, eles estavam expostos a uma diversidade de produtos. Eram mais de dez produtos durante um só ano. Você não tem como dizer que a causa da doença foi exclusivamente o DDT, mas é possível que ele tenha uma responsabilidade com esse quadro crônico, como o câncer. Pela exposição contínua aos inseticidas, tudo leva a crer que esses trabalhadores estejam contaminados", explica.

Gurgel acredita que os trabalhadores não receberam as informações necessárias para o trabalho com os inseticidas e não usavam equipamentos que pudessem dar o mínimo de proteção a eles. "Eu presenciei no Pará um supervisor da Funasa botar umas gotinhas de DDT no copo e tomar em frente a uma plateia repleta de servidores, para demonstrar que aquilo não era danoso, quando a literatura já estava repleta de artigos científicos demonstrando o potencial danoso desse produto. Um profundo desconhecimento! O supervisor, que estava ensinando, era detentor dessa profunda ignorância, imagine quem estava recebendo algum conhecimento sobre toxicologia! Não se dizia quais riscos aquilo tinha para a saúde, aliás, o discurso na época era de que não existia risco, porque o Ministério da Saúde indicava o uso", conta.

A médica também afirma que o DDT e o BHC são cancerígenos, além de provocar alergias, problemas no fígado no rim e diabetes. Segundo a pesquisadora da Fiocruz, os exames têm dificuldade de identificar a presença dos inseticidas em trabalhadores que atuaram de dez anos para trás, porque os agrotóxicos não ficam circulando no sangue. "Essa é uma dificuldade que a ciência ainda não consegue responder e por isso você tem que trabalhar com um nexo epidemiológico", comenta. Apesar dessa dificuldade, Idê Gurgel diz que é possível estabelecer o diagnóstico porque existe um alto número de casos de morte e doenças envolvendo os trabalhadores da Funasa. Ela também afirma que os inseticidas podem matar. Assista no vídeo:

O toxicologista e farmacêutico Otávio Brasil, responsável pelo Centro de Atendimento Toxicológico "Dr. Brasil", localizado em Brasília, também acredita que os trabalhadores estão contaminados. Ele é responsável pelos resultados dos exames dos agentes ligados a Associação dos Servidores da Ex-Sucam Expostos ao DDT de Altamira.

A Associação enviou imagens de alguns exames ao LeiaJá e todos eles atestam a presença de DDT nos trabalhadores examinados. Em um dos documentos, consta a informação de que um servidor possui 2,75 ug/dl do inseticida no corpo. De acordo com Otávio Brasil, ele já realizou cerca de mil exames para investigar a presença de inseticidas nos pacientes.

Em entrevista ao documentário produzido pela TV Câmara, o toxicologista Otávio Brasil afirmou que as doenças são incuráveis. "Essas pessoas (trabalhadores) têm que ser aposentadas. Se é incurável e degenerativo, a tendência é somente piorar o quadro do paciente. Não está havendo esta resonância neste País. Esse pessoal está todo intoxicado e o governo precisa ampará-los para poder ter uma aposentadoria digna e com saúde", afirmou Brasil.

Para o presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia e docente da Universidade de São Paulo (USP), Daniel Dorta, os inseticidas, de fato, podem causar doenças. "Como toxicologista, posso afirmar que os praguicidas organoclorados podem causar enfermidades. Há muito tempo a literatura científica já demonstrou que praguicidas como o DDT podem causar problemas relacionados ao sistema nervoso central, por atuarem como estimulantes deste sistema", explica Dorta. Entretanto, o presidente explica que existe uma instituição mundial que aponta poucas possibilidades do DDT causar câncer. "A principal agência mundial que estuda e classifica as substâncias quanto ao seu potencial carcinogênico, a International Agency for Research on Cancer, da Organização Mundial da Saúde, classifica o DDT em um grupo onde há poucas evidências de que possam causar câncer em humanos", esclarece.

Sobre os exames que apresentam presença de inseticidas nos servidores, Daniel Dorta esclarece que não existe um estudo ou quantidade limite que acusa o inseticida de causar uma determinada doença. Porém, o presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia afirma que os inseticidas, em casos de intoxicação aguda, podem levar a diversos problemas, podendo os sintomas aparecerem em 30 minutos após a exposição aos produtos. "Entre os sintomas podem aparecer convulsões, paralisias e, em alguns casos, dependendo da dose e do tempo de exposição, insuficiência respiratória e morte", comenta o especialista. Apesar da afirmação, Dorta também reconhece que é difícil estabelecer um nexo causal.

"A dificuldade, no entanto, é sempre estabelecer a relação entre a presença do agente químico no organismo do indivíduo e o efeito encontrado, ou seja, a determinação do nexo causal. Neste sentido, em caso de intoxicação aguda, esta relação é mais fácil de ser feita. Em intoxicações crônicas – caso dos servidores da Funasa, pelo longo tempo de exposição - é muito mais complicado, pois é preciso levar em conta todos os outros fatores da vida do indivíduo, num processo denominado de avaliação de risco. Neste processo, dados como outros hábitos do indivíduo, como fumar, alimentação, histórico familiar e genética, devem ser levados em conta", explica o presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia.

Daniel Dorta analisou os exames dos servidores da Região Norte, enviados à nossa reportagem. De acordo com o especialista, pelo aspecto danoso atribuído aos inseticidas, existe sim uma possibilidade dos trabalhadores estarem contaminados. Entretanto, segundo Dorta, a identificação dos compostos no organismo de uma pessoa, não indica que o efeito aconteça. "Um dos pilares básicos da toxicologia demonstra que a exposição a toda e qualquer substância pode ser tóxica ao organismo, mas, vai depender de sua concentração disponível no organismo após absorção para que este efeito possa aparecer ou não", explica. "Frente aos resultados dos laudos, e levando em consideração que os inseticidas são compostos que podem ser absorvidos pelas principais vias (dérmica, respiratória e digestiva) e que possuem um tempo de meia-vida biológico muito extenso, desde que esses funcionários não tenham utilizado os materiais de proteção individuais e seguido as boas práticas de aplicação, há sim a possibilidade de encontrar estes compostos, como o DDT, em seus organismos", complementa o presidente.

Ainda de acordo com Daniel Dorta, no que diz respeito ao tratamento dos trabalhadores com possibilidade de intoxicação, não existe um antídoto específico para intoxicações por organoclorados. "Em intoxicações agudas, a primeira medida é sempre manter as funções vitais e o controle das convulsões. Não há tratamentos específicos para intoxicações crônicas, a não ser o tratamento adequado às possíveis manifestações secundárias que possam vir a aparecer", finaliza.

O Ministério da Saúde utiliza, como referência para orientar suas decisões nesta área, as informações disponíveis no Programa Internacional de Segurança Química (IPCS), organismo vinculado à Organização Mundial da Saúde, Organização Internacional do Trabalho e Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Atualmente, as referências demonstram que não há evidências sobre possíveis problemas de saúde humana causados pelo DDT.

Resposta do Ministério

Procurado pelo LeiaJá, o Ministério da Saúde, por meio da sua assessoria de imprensa, informou não reconhecer que as doenças dos servidores têm relação com o trabalho de combate às endemias. O órgão também afirmou que apenas utiliza produtos que são incapazes de causar danos à saúde dos servidores. Confira, na íntegra, a nota enviada a nossa reportagem:

O Ministério da Saúde realizou, em 2000, trabalho de avaliação na saúde de cerca de 130 servidores que trabalharam com o DDT. Estes servidores foram submetidos a um protocolo médico abrangente, não tendo sido relatadas evidências de que os problemas encontrados fossem devido ao uso profissional do DDT nas atividades de controle da malária na região.

As informações sobre segurança de trabalho disponíveis na época eram repassadas aos servidores que trabalhavam com o DDT. Na ocasião, as orientações eram enfáticas em relação aos cuidados de manuseio e utilização do produto, principalmente em relação ao acondicionamento e cuidados após sua borrifação.

Todos os inseticidas utilizados no controle de vetores no Brasil são aqueles recomendados pelo World Health Organization Pesticide Evaluation Scheme (WHOPES), integrante da Organização Mundial da Saúde (OMS), cuja principal missão é indicar quais inseticidas podem ser utilizados em saúde pública sem apresentar danos aos trabalhadores da saúde e à população em geral. No Brasil já não se usa DDT em ações de saúde pública desde a década de 1990. Atualmente, a substância adotada para controle da malária no país é Etofenprox PM 20%.
reportagem originalmente publicada em http://www.leiaja.com/especial/sequelados/02_sequelados.html
para acesso total à reportagem, clique no link 


terça-feira, 7 de abril de 2015

Uso de inseticida pode ter matado 240 no AC 15 estão na 'fila da morte'

Ex-agentes da Sucam usavam DDT contra a malária na década de 70.
Especialista diz que agentes estão intoxicados por agrotóxicos.

Arlete abandonou o ofício de costureira e cuida, há 28 anos, do marido Sebastião que não fala e não anda (Foto: Tácita Muniz/G1) 
"Tenho certeza que não escapo dessa, já preparei os meus filhos". A frase sai arrastada, entre os dentes de Raimundo Gomes da Silva, que aos 82 anos integra a chamada 'lista da morte', formada por ex-servidores da extinta Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam), que tiveram contato direto com o pesticida Diclorodifeniltricloroetano (DDT), usado para conter o mosquito da malária na região amazônica nas décadas de 70 a 90 no Acre.

O aposentado desenvolveu problemas no coração, rins e tumores. No Acre, o extinto órgão do governo federal possuía cerca de 540 funcionários, dos quais 240 morreram. Até este mês, 15 estão na lista da morte somente em Rio Branco. Sem ter a intoxicação reconhecida pelo poder público, o levantamento é feito pela Associação DDT e Luta Pela Vida, que estima que o número de ex-agentes 'condenados à morte' deve ser ainda maior.

"Comecei a contabilizar as mortes em 2000, quando começamos a perceber que homens que trabalhavam com a gente desenvolviam doenças crônicas. Mas, são 22 municípios no Acre, com certeza o número de ex-servidores que estão em casa só esperando a morte chegar deve ser maior do que 15, pois esse número que temos, da espera, é referente só a Rio Branco", explica o presidente da associação, Aldo Moura, de 63 anos.
O DDT começou a ser usado no Brasil logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Naquela época, homens, sobretudo da região amazônica, conhecidos por 'guardas mata-mosquitos' ou apenas 'soldados da malária', foram recrutados para combater uma verdadeira guerra contra o mosquito vetor da malária e outras endemias. Sem conhecimento e acreditando que o veneno era inofensivo ao ser humano, os agentes se embrenhavam na mata e tinham contato direto com o produto, usando apenas um chapéu de alumínio e uma farda.
Apenas em 2014, a associação contabilizou 11 mortes de ex-agentes. No início de janeiro de 2015, dois homens já morreram. Atualmente, a associação luta para que esses trabalhadores que prestaram serviço ao Estado possam contar com uma unidade de saúde específica para amenizar as dores que sentem. A evolução dos sintomas é semelhante para todos: começa com a perda do tato, coceira, formigamento na língua. Alguns desenvolvem câncer, todos têm os movimentos paralisados e não conseguem andar ou movimentar-se. Aos poucos, órgãos como o coração, rins e fígado vão apresentando deficiência.






Ao chegar na casa de Sebastião Nascimento, equipe do G1 flagrou ele sendo atendido pelo Samu (Foto: Tácita Muniz/G1)


A doença que acomete esses homens pode ser rápida e durar dias, porém, alguns ficam acamados por mais de duas décadas. Esse é o caso de Sebastião Bezerra, de 76 anos, pai de quatro filhos. Com o corpo trêmulo, atualmente ele não fala, não anda e já não consegue mais se comunicar. Ao seu lado, a esposa Maria Arlete Martins Bezerra, de 58 anos, conta que há 28 ele se encontra nesse estado. Sem apoio do poder público e já desenganada, ela diz saber o destino do marido.
"Ele chora muito, porque o corpo parou, mas a mente está sã. Grande parte do que estamos conversando aqui, ele consegue entender. Tem dias que ele não aguenta e chora mesmo. Eu me sinto de mãos atadas, porque a gente precisa se consultar na unidade de saúde pública, lá os médicos dizem que não podem passar mais nenhum medicamento, que tem que ser os mesmos que ele toma, então não adianta nada", lamenta a esposa.
O casal vive hoje com a aposentaria de Sebastião, que chega a pouco mais de R$ 2 mil. Só de medicamentos, para diversas doenças que apresentou com o tempo, a família gasta mais de R$ 1 mil. Sobre o descaso das autoridades a esses ex-servidores, a mulher desabafa: "É difícil ver uma pessoa que deu a vida para a ajudar a população nesta situação, completamente abandonado".
Raimundo Gomes, citado no início dessa matéria, permanece deitado há quatro meses. Ele apresenta problemas no coração e um rim está paralisando, além de outros sintomas. Durante entrevista ao G1, Raimundo grita de dor ao tentar mudar de posição, com um terço pendurado à cabeceira da cama, e entre lágrimas, tenta resumir o que sente sobre estar desamparado pelo Estado e diz saber que está no fim.


Raimundo Gomes diz que sente muitas dores e chora ao falar sobre seu estado de saúde (Foto: Tácita Muniz/G1)
Raimundo Gomes diz que sente muitas dores e chora ao falar sobre seu estado de saúde (Foto: Tácita Muniz/G1)
“Muita humilhação, a gente é muito humilhado. É aquele ditado, 'Deus dá, Deus tira'. Nunca olharam para a gente durante todo esse tempo e nisso já se foram mais de 200 [funcionários]. Tenho certeza que não escapo, não saio mais dessa. Na próxima viagem, eu vou embora e já preparei meus filhos", diz emocionado.
Casada com ele há 44 anos, a esposa Maria Nazaré Soares da Silva, 67, diz que não dorme mais durante a noite. "Ele reclama de coceira nas costas, onde eles carregavam a carga do DDT. Começou a ter problemas em tudo. Quando a gente trata uma coisa, aparece outra. Dessa última vez, estivemos na UTI com ele, o próprio médico nos disse que era uma 'sinuca de bico'. Um médico uma vez nos disse que o tóxico tinha tomado 60% do corpo dele", relata.
Vivendo com a aposentadoria, a família hoje gasta cerca de R$ 1.800 entre remédios, plano de saúde e internações. A esposa afirma que o marido já proibiu os bisnetos de entrarem no quarto e parece se despedir dos filhos.
Quando equipe do G1 chegou à casa de Sebastião do Nascimento de Moraes, 74 anos, para a entrevista, o ex-agente estava sendo levado mais uma vez pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Cansado e sem poder falar, Raimundo entrou mais uma vez na ambulância com os olhos lacrimejando. No dia anterior, viu a notícia sobre a morte de um dos companheiros. Segundo a esposa, Laura Pedro de Carvalho, de 67 anos, ele disse que seria o próximo.
"Ele, vendo a reportagem, disse que o último rapaz que morreu ficou ao lado dele quando passou 30 dias na UTI, em dezembro. Disse que seria o próximo e falou que o companheiro gritava de dor. É muito triste a pessoa estar ciente que espera em uma fila pela morte", lamenta a companheira que está ao lado de Sebastião há 15 anos.

Sebastião do Nascimento indo ao hospital para

tentar conter as dores (Foto: Tácita Muniz/G1)
Na saída da ambulância, a tensão e tristeza tomam conta da casa do ex-servidor. A mulher e os filhos veem, consternados, mais uma ida dele à unidade de saúde. "Ele se medica, dão alta, mas nunca adianta", diz a esposa.
Sebastião teve que amputar o pé há dois anos. De acordo com a família, o sangue parou de circular e o pé de Sebastião começou a necrosar, primeiro os dedos, depois o pé. O enteado, Reginaldo Luiz de Carvalho Longhi, de 40 anos, se indigna ao ver o estado do padrasto.


"Um homem desse, que passou a vida trabalhando para o Estado, tem uma aposentadoria que é uma vergonha. Está explícito que esse pessoal está morrendo pelo uso do DDT e ninguém faz nada", critica.
Com a perna amputada há três meses, Pelegrino Thomaz, 43, chama o pesticida de "maldito DDT". Com mais condições, ele pôde viajar e diz ter tido a comprovação de um médico, em Vitória (ES), que seu corpo estava intoxicado com o veneno. “Um dia acordei e estava sem minha perna, minha única reação foi chorar. Mas, a gente tem que levantar a cabeça, não pode baixar a crista”, diz.
Pelegrino passou cerca de nove meses se tratando fora do Acre. Sobre o descaso do Estado em relação a extensa lista de mortes ligadas ao DDT, ele é enfático e relembra do trabalho de agente de endemias, em que foram pioneiros. “Fomos esquecidos, roubaram nossa identidade”.

‘DDT e Luta Pela Vida’
Aldo Moura trava uma verdadeira batalha há 14 anos para que os trabalhadores sejam reconhecidos e as famílias indenizadas pelo Estado. Aos 63 anos, ele viaja pelo país apresentado trabalhos e contando um pouco dos problemas de saúde que ele e os companheiros adquiriram em uma época em que a comunidade não dispunha de muitos mecanismos para tratar a saúde.
Antes de ser Sucam, o órgão era denominado Campanha de Erradicação da Malária (CEM), quando a maioria dos trabalhadores entraram para desenvolver o trabalho de agentes de endemias. Ele conta que na época, os servidores desenvolviam atividades até de Corpo de Bombeiros e polícia. “Se alguém se afogasse eram os soldados da borracha que iam mergulhar. Um crime acontecia nessas cidades mais afastadas e a gente que ia atrás do criminoso e trazia para as autoridades”, relembra.
Hoje, os funcionários da extinta Sucam que não estão aposentados são vinculados ao Ministério da Saúde. Porém, Aldo denuncia que o órgão nem mesmo os reconhece. Além disso, se diz completamente abandonado pelo Estado.

Aldo Moura em borrifação no campo na década de 70 (Foto: Aldo Moura/Arquivo pessoal)
“Além do abandono, nós temos que sobreviver também com a discriminação. O que estamos pedindo não é favor, é um direito que temos porque doamos a nossa vida para que a malária não dizimasse famílias e mais famílias. Íamos para o mato sem data para voltar para a casa, muito dos servidores perderam suas mulheres”, conta.
Aldo diz ainda que muitos morrem sem ao menos ter um lugar para ser velado. “O último que faleceu não tinha nem casa aqui para fazer o velório. É muito triste ver esses homens que eram ‘um trator’ hoje estarem completamente dependentes da família, esperando a morte chegar e o poder público vira as costas”, reclama.
O ex-servidor também sofre com os sintomas do uso do DDT, Aldo sente a língua dormente, coceira na pele e também muitas dores nas costas. Espírita, ele busca na religião uma forma de não temer a morte, pois acredita estar na lista. “Eu não tenho medo da morte, o que assusta é sofrer da forma como meus colegas estão sofrendo, sem assistência alguma”, diz.
Hoje, eles lutam por uma indenização de R$ 100 mil e buscam, do governo do Acre, uma unidade que dê preferência à exames e atendimento desses ex-servidores.

Ministério da Saúde diz que intoxicação não é comprovada
Em nota ao G1, o Ministério da Saúde alega que não há nenhum exame que comprove que as doenças desenvolvidas por esses homens sejam em decorrência do contato direto com o DDT e afirma que os servidores têm a assistência assegurada pelo Sistema Único de Saúde. Segundo o Ministério da Saúde, “a Justiça eximiu o poder público de realizar atendimento especial a esses servidores por não ter constatado a lesividade do DDT”.
Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde (Sesacre) reforçou o argumento do Ministério da Saúde e disse que, como a intoxicação pelo DDT não foi comprovada, não é possível oferecer um atendimento diferenciado aos ex-agentes.

'Intoxicados pelos solventes do petróleo', diz toxicologista
O toxicologista de São Paulo, Anthony Wong, explica que os ex-funcionários estão intoxicados, não só pelo contato com o DDT, mas pelos solventes à base de petróleo usados na mistura para obter o veneno. Segundo ele, os sintomas descritos são decorrentes do contato direto desses homens com essas substâncias químicas altamente tóxicas.
"Não dá para ligar esses sintomas ao DDT especificamente. O que acontece é que essas pessoas tinham contato direto com solventes de petróleo, como gasolina ou querosene, e se expuseram a grande quantidade de agrotóxicos. Existem mais de 400 substâncias diferentes, que são altamente tóxicas, cancerígenas e induzem problemas neurológicos, inclusive, com alteração de impulso nervoso que ocasiona a necrose ou a má distribuição de sangue para tecidos distantes", esclarece.
Sobre o fato do não reconhecimento dessa intoxicação, o especialista explica que esses sintomas são resultado de uma gama de substância que os agentes foram expostos no local de trabalho, o que não retira a responsabilidade do poder público. Além disso, ele destaca outras condições da época, como a má nutrição e também o uso de álcool e cigarro aliados a esses produtos.

O DDT era usado para combater a malária, principalmente na região amazônica (Foto: Aldo Moura/Arquivo pessoal)
Wong afirma ainda que não existe um tratamento para a cura dessas doenças, mas pode-se dar um suporte para que essas pessoas tenham a expectativa de vida maior e não sofram com as dores constantes. "A pessoa deve tomar analgésicos e tomar complexo B, além de outras vitaminas, o que pode restaurar uma parte das funções nervosas que foram afetadas pelo solvente e outros agrotóxicos", destaca.
As lesões causadas pelos produtos químicos, segundo o médico, são gravíssimas e fazem os afetados perderem a capacidade de falar e até raciocinar. "Essas pessoas, na verdade, são vítimas de todo esse conjunto de solventes e inseticidas".
Na literatura, segundo Wong, não há muitos casos graves associados ao DDT, mas sim aos outros produtos usados para diluir o pó na época. "São sequelas de uma vida que não fizeram o controle adequado na segurança do trabalho. Os que trabalham em outro tipo de mineração também são exposto a isso e pagam esse preço. É revoltante que o poder público não ampare esses homem que sacrificaram suas vidas para construir o Brasil e hoje são deixados de lado", finaliza.
Pelegrino Thomaz amputou a perna há pouco mais de três meses (Foto: Tácita Muniz/G1)
Processo de ação civil pública do MPF-AC aguarda julgamento

O Ministério Público Federal no Acre impetrou ação civil pública em 2009, onde pedia a indenização e o atendimento pelo poder público aos ex-agentes da Sucam. A Justiça julgou a ação improcedente alegando que não havia provas suficientes da intoxicação desses homens pelo DDT. Em 2013, o órgão recorreu da decisão alegando que " tanto a Funasa, na qualidade de sucessora da Sucam, quanto a União, em última análise, são as responsáveis pela exposição das vítimas ao DDT" e destaca que o poder público deve prestar assistência à população atingida pelo pesticida.
De acordo com o MPF-AC, a ação foi ajuizada após muitas tentativas de solução extrajudicial do caso, onde o poder público não reconhecia o direito dos agentes. Após a ação ainda foram tomadas algumas medidas.
Em um trecho do documento, o MPF ressalta ainda que "a documentação produzida, no entender do MPF, revela o descaso do Estado para com os funcionários e ex-funcionários da Sucam/Funasa [Fundação Nacional de Saúde] contaminados pelo DDT, cujas moléstias decorrentes de possíveis intoxicações demandam um atenção especializada, por parte do poder público".
O MPF-AC aguarda decisão da justiça sobre a ação, que está parada no Tribunal Regional Federal, da 1º região, desde agosto 2013.

fonte: http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2015/02/uso-de-inseticida-pode-ter-matado-240-no-ac-15-estao-na-fila-da-morte.html